Meus olhos são extensões de uma árvore com raízes europeias em terras brasileiras, carrego em mim a herança deixada por meus antepassados ao qual me orgulho e reconheço vidas marcadas por caminhos dolorosos de saudade e trabalho.
Vejo no passado, a resposta para a atualidade- culturas diferentes germinando a terra, fazendo brotar a diversidade.
Para entendermos o povo que chega em terra nova, basta olhar para trás com atenção e não será difícil perceber que as linhas que escrevem o presente seguem um curso parecido das que já foram escritas no passado por imigrantes de diferentes localidades do globo. São ciclos culturais marcados pelo trajeto de um caminho semelhante e o que os diferencia é a origem da terra natal. As que predominam são de descendência europeia, com a ressalva de que devemos muito aos nativos que aqui chegaram antes do desenvolvimento econômico e tecnológico que marcaram a terra com seus arcos e flechas, fizeram da vida um lar natural.

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O município de Pato Branco–PR recebeu no ano de 2012, imigrantes vindos do Haiti - país localizado na América Central e banhado por águas Caribenhas. A história do Haiti é marcada pela exploração, foi duramente abusada com a chegada de Cristóvão Colombo que inicialmente batizou a terra de Hispaniola. Trouxe em suas embarcações soldados e armamentos que resultou no massacre dos nativos. Os índios que restaram, foram duramente escravizados para extrair as riquezas do local, a princípio, o ouro. O continente europeu de solo impróprio para o plantio percebeu a fertilidade da ilha e aproveitou a oportunidade para fazer do Haiti a horta europeia que faltava para o desenvolvimento agrícola da cultura da Cana-de-açúcar, café e cacau. Não bastando o massacre indígena caminhando junto com a exploração e escravidão, buscou no continente africano um grande número de homens capazes de suprir a demanda do trabalho forçado. Desta forma, a riqueza de uma terra adubada com o suor negro e com sangue indígena levanta um império branco sujo de sangue.
No município de Pato Branco-PR convivi com um grande número de imigrantes por um período de três anos, conhecendo a forma como vivem, hábitos, lugares onde trabalham, a cultura e as histórias. Tive a honra de conhecer seres humanos capazes de entender a pluralidade que existe dentro de um Universo - fruto da diversidade cultural. Chamou-me a atenção o programa de alfabetização voluntária para imigrantes na cidade, ideia que nasce nos interiores da Igreja Matriz - semente germinada pelo falecido Frei Vitalino Turcato e que atualmente brota trazendo bons frutos, conquistando espaço em diferentes instituições religiosas e acadêmicas da cidade como é o caso do programa realizado pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná no município que segue os mesmos princípios da ideia original com o apoio de professores e acadêmicos. Percebo que o projeto de ensino da língua portuguesa para os imigrantes além de proporcionar um intercâmbio cultural entre nações também pode facilitar a integração de um povo para com o outro.

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A imigração haitiana destacou-se na história atual, assim como a biografia do Haiti se destaca até os dias de hoje por ser o primeiro país negro a tornar-se livre e independente. O jornal local pato-branquense publicou no mês janeiro de 2017 uma estimativa de que 300 haitianos vivem na cidade, não havendo um número exato devido ao grande fluxo de entrada e saída de imigrantes na região. O imigrante que chega busca trabalho, adota como lar o templo de seu corpo, não se prendendo onde não há trabalho, criando raízes somente onde as oportunidades estão evidentes. Por esta razão existe uma grande dificuldade de apontar com precisão o número de haitianos que vivem na cidade.
O meu presente foi conquistado por imigrantes da família. Gostava de ouvir minha falecida avó contar-me sobre minhas origens e, desde então, sempre busquei entender os outros através da experiência. Tenho em mim a clareza que não se pode viver a vida de outra pessoa, mas é possível entender se vivermos como ela.
Por este motivo busquei na cidade documentada no Brasil, um haitiano capaz de traduzir e nos guiar no Haiti. Esta foi a forma mais próxima que encontrei para entrar na realidade do povo que documentei. Moramos em La Source no Haiti por 24 dias na casa do rapaz que nos acompanhou. Neste período, presenciei a felicidade do reencontro e senti a dor da perda - minha maior influência pessoal e profissional seguiu caminho rumo ao plano do futuro sem ao menos eu poder dizer adeus – meu avô, falecido durante minha estadia no país caribenho. Conheci o grande abismo que o distanciamento cultural pode causar na vida de uma pessoa e também encontrei o paraíso de águas cristalinas em solo rochoso. Vi pessoas capazes de acertar e errar , que sabem trabalhar e olham para frente com o mesmo olhar de quem aqui já viveu no passado. Olhando nos olhos descobri o espelho da alma e que o lugar mais confortável é a consciência. Vivi a felicidade de encontrar muito azul e pedras também, experiência pelo qual não teria passado se tivesse hesitado em viver como um haitiano. Após retornar ficou claro para mim que é preciso ir a fundo quando se busca o conhecimento e que preferir o conforto não era a melhor alternativa para o que eu estava buscando. Ouvi falar que o melhor caminho é o da linha reta, mas se não fosse pelas curvas não teria encontrado o real valor da vida, onde não há espaço para medir a grandeza através do preço monetário.

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Os imigrantes que vêm para o Brasil, trazem poucos pertences, mas em sua bagagem carregam belas páginas escritas por verdadeiros guerreiros. São pessoas que chegam para suprir a mão de obra escassa na região e com muito trabalho realizar o sonho de uma vida livre de limitações. São frutos de uma nação desprendida de uma capacidade surpreendente. O material é superado como a força de uma rocha, a beleza está na natureza e nos olhos de quem lá um dia viveu. Entendi que o presente é o reflexo do passado sendo que o futuro pode ser transformado com o tempo.
Relato a história de um povo que trabalha desde o nascimento de sua própria história e apesar de livre/ independente, enxerga nas pessoas a dificuldade de ser aceito.
É sabido que na adversidade nascem as grandes evoluções fruto de muito trabalho e dedicação, é onde floresce a criatividade base para inovação. O processo de adaptação é árduo para todo imigrante, independente de suas origens - são pessoas dispostas a sair do convencional, aprender diferentes dialetos, acostumar-se à cultura local, conviver com as diferenças e principalmente submeter-se a trabalhos não condizentes à realidade de formação acadêmica. Existe algo em comum entre os que vieram no século passado e os que atualmente vêm: todos buscam melhores condições de vida - são famílias e histórias deixadas para trás em busca de um objetivo.
O trabalho de um fotógrafo vai muito além do ato fotográfico, é delicado, a paciência pode ser tão importante quanto a própria fotografia, uma depende da outra, o disparo da câmera na hora errada pode mudar o contexto de uma história. O quadro de uma foto é o resumo do momento em que se vive, é importante entender o contexto antes de agir. É fato que cada indivíduo tem um modo de pensar e suas opiniões são expostas de acordo com a realidade vivida. Levo em minha bolsa de trabalho poucos equipamentos que me servem de ferramentas para registrar as histórias que vivo, busco conhecer o ambiente e, principalmente, as pessoas. O convívio com os imigrantes haitianos no Brasil me fez enxergar que o ponto inicial para inserção social de um indivíduo em qualquer sociedade, na maioria das vezes, é o trabalho o qual proporciona o contato direto com as pessoas e consequentemente com a língua. Entendi que a grandeza de um sonho está diretamente relacionada com o caminho percorrido e com a coragem de seguir com determinação, sendo a maior força a motivação que habita no interior de cada um. Vivi dias de muito sol, histórias de pessoas que venceram todas as barreiras geográficas em busca de suas realizações pessoais e que hoje colaboram para o desenvolvimento econômico do Brasil. Presenciei o estrago que uma tempestade pode causar no emocional de uma pessoa, mas as nuvens que o preconceito pode formar podem ser muito piores, criam limites a quem é capaz.

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Tudo isso parece-me ser claro para todo aquele que decide mudar de país um dia; mas o que vejo de especial nesta história é que esta imigração sofre com o gelo que queima na pele, é o pigmento que antes não os diferenciava, hoje, infelizmente, faz a diferença.
Ao chegar ao Brasil ficou claro a expressão ‘’tudo passa’’ mas o que dificilmente vejo passar é o nativo ao lado do imigrante. Antes eram as cartas borradas por lágrimas de saudade. Hoje, além do sofrimento de todo imigrante, existe a vontade de sentir-se incluso e dividir o mesmo lado da calçada.
Antes de ir para o Hiati ouvia através da mídia, que o país estava sobre o reflexo da tragédia de 2010, que era pobre e sofredor. Ao chegar lá, pude perceber que o passado pode sim trazer consequências graves para uma nação, mas não me refiro ao terremoto ou outras catástrofes naturais, e sim, à marca que o homem branco deixou ao cultivar a cultura do preço onde o valor não tem vez. Muitas vezes terminava o dia perseguido pela mesma pergunta; será mesmo que a culpa está na natureza ou no branco que despiu o solo para ver em sua senhora o brilho falso de uma pedra roubada? A conta impressa, do passado, em papel branco tingido por sangue escrito a chicote, ofusca com a noticia o presente de gente trabalhadora que há tempos superou o balanço da terra com o gingado da música ao som de Tambú – espécie de bongô haitiano.
Fragmentos de histórias são contados como verdades, fazendo esquecer a quem recebe, o outro lado da moeda. A mentira quando muito repetida, vicia os ouvidos e ofusca a visão. Extraíram o doce da cana de açúcar, capturaram o brilho superficial dos minerais, cortaram árvores, mas não conseguiram tirar o que havia de mais valor: o sorriso que dá a forma para o rosto do ser humano. Ainda assim, assombrado por histórias mal contadas no lugar onde morei no Haiti, no bairro de La Source, a 30 km da capital Porto Príncipe, pude perceber que a interpretação depende muito do que se quer ver. Questionei-me diversas vezes e policiei-me para manter-me no foco; a temperatura para onde fui não assemelha-se ao lugar de onde vim, a cultura é diferente e o povo é humano. Me chamou a atenção sobre a forma como meu interprete era tratado e reconhecido entre os locais do país - os nativos chamavam-no de “ je beni ”, que em português significa “Deus te abençoe”. É uma tradição no país chamar crianças órfãs de mãe desta forma, para que todos o entendam e ajudem para que ela cresça com carinho e para que nada lhe falte.
A teia evolutiva da comunicação é tecida por vários fios que constroem uma história. Nenhuma conclusão deve ser tirada a partir de um único material. O quadro de uma cena seja ela fotográfica ou cinematográfica é o espelho do que se vê através da lente que não deixa de ser real mas, também é preciso entender que múltiplas cenas acontecem ao redor.
Sabendo da importância que a comunicação representa, tratamos a história com o cuidado e respeito que uma mãe tem ao gerar um filho. Registrei a cidade onde morei no Haiti e a cidade onde nasci no Brasil, isso não significa que ambos os países, Haiti ou Brasil não possam ser vistos sobre outras perspectivas: há sempre um ângulo para ser visto.
Espero que as imagens registradas por este trabalho despertem o imaginário e a curiosidade de quem vê; abrindo as portas da percepção a caminho do respeito e da inclusão social e que a cor não seja obstáculo para uma amizade. O mundo precisa de pessoas dispostas a olhar para própria história, as raízes. Entender as diferenças, relacionando o passado com o presente para que dessa forma encontremos a beleza de uma sociedade que convive em harmonia, respeitando as diferenças de cada um. A beleza está no natural, entender o espaço é obrigação para quem um dia pensou em mudar.
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João Pedro Braun
Pato Branco, 2017